quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A moça

Era uma mulher irremediavelmente anacrônica e inverossímil desde que eu era criança. Estava cotidianamente no degrau de concreto, cabelos negros de índia. Durante toda a minha infância, manteve-se, quem sabe em estado de se concretizar, no patamar cinza, cercada de tristeza inconsciente, de autonomia parasita de vida.
Desde pequena, ela me intrigava, pela imobilidade, pela cor da pele. Antes - como um estático congestionamento - a mulher divagava ou desmembrava a própria vida e parecia que, ainda assim, questionava minha existência ou o eterno olhar que depositara nela. Um olhar sem vergonha e mítico, que a reconhecia como atriz e solidão.
Hoje, ela continua a contemplar(-se) do mesmo degrau, que, a mim, não sugiro nenhuma mudança. Agora anda acompanhada de um rádio, um pequeno rádio, cinza brilhante, igual fotografia em preto-e-branco. Continua, portanto, mais absolutamente inverossímil, personagem: minha Macabéa, de quem nunca ouvi uma única palavra, um único pensamento.
Vi-a caminhando já até por outras ruas e, dessa vez, sentei e a esperei passar, achando intensamente irracional toda aquele liberdade de passos, celebração individual e roupas soltas.

Um comentário:

  1. Seu traço "Adélia Prado" se mostra na prosa...

    o que não deixa de se inovador essa intertextualidade da poesia para a prosa... e vice-versa.

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