quarta-feira, 27 de julho de 2011

Intervalo

No mundo em que existem até remédios para as unhas crescerem há também um amor que quase se esquece ou se esconde.
Ele morreu.
Perguntavam-se por soluções que não existem. Ninguém questionava sobre seu último pensamento.
Contudo alguém, especialmente ela, uma antiga amiga, encontrou aquele amor. Estava escondido, não de propósito, mas foi sendo apertado até encontrar lugar atrás do fígado, talvez. Enquanto sua função real era ser mesa repleta de doces, chamando a atenção de qualquer imaginação.
Agora os doces, como já sem validade, irrigavam todo o corpo dela com um sabor irreconhecível. Aquele que sentimos uma única vez diversas vezes.
Existia, então, uma especiaria, uma culinária para cada amor?
E a amiga já não podia comer compulsivamente todas as guloseimas e se fartar de açúcar e companhia, o que havia guardado já era intocável em qualquer parte.
O último pensamento do morto foi, eu sei, como o de qualquer homem com alzheimer, esse pensamento que temos todos os dias: com a doença não se esquece só da vida, mas também da morte, vivemos em algum intervalo. Somos iguais em vida e morte.
Já a amiga, ela estava viva, e ao entrar no quarto e fechar a porta nada se modificou: continuava viva e dolorida. Não havia espaço, costume ou jardinagem. Era a vida e a morte. Nosso maior desespero. 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

História para qualquer um (Fotografia X - talvez de Camocim - CE)

Estavam lá juntos.
- Gosto mais do ar do interior. Inclusive o de dentro.
Ela fingiu não entender para induzir novas descobertas. Porém, era contagiada pela confissão de que ele se interessava pelo o que não se vê. Justo ela, quase incolor.
- E da exatidão?
- Quase não me pertence.

Ainda não era verão. Ainda não era tarde. Ainda não era muita coisa, mas já era lugar. Viam pessoas, miudinhas, miudinhas, caminhando unânimes para o mesmo ponto. Estendendo seus corpos em embarcações quase vivas, condizentes com a eterna inauguração das águas e suas bifurcações gravadas em alguns espíritos.
Ambos sentados na areia. Ambos voltados para o exterior, tentando polinizar o mundo com a existência indeterminante das causas. E pouco desconfiavam de que o encontro deles era causa da mais pura vontade: de alguma conclusão que esbarrava entre um diálogo e uma fotografia, não se sabe. Mas, na realidade, só era importante, e eles não sabiam, que mesmo não substituindo - os pés - a realidade, que o ar substituísse a sensação de que depois dali era impossível.
Necessitava-se do vento que vem do mar!

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Um encontro de meios sujeitos.

Não foi no Jardim Botânico, mas poderia ter sido.


Ele a encontrou na plataforma da estação do metrô: ambos recobertos pela terra e por sentimentos desconfortáveis. O rapaz já reconhecia aquela sensação da falta de táticas para burlar toda a saudade dela que, de repente, crescia. Saudade de como os olhos dela prestam atenção, saudade da respiração inalada por seu peito quando se abraçavam.
Tenho certeza, ela não o ignoraria, mas sabia da demora de meses que ele leva para se completar e com o encontro, as peças que quase se fundiam, tornariam-se soltas novamente. Assumia-se, sem outra possibilidade, causadora de alguns substantivos e adjetivos indeléveis na vida do rapaz. 
Ele, imaginando as mesmas causas, aproximou-se dela antes da entrada no vagão e a conversa - da estação Paraíso à Consolação - não passou de perguntas civis, onde ele percebia a indistinção entre a loucura e a sanidade. Ambas construídas de devaneio dentro de devaneio. Não havia saída.
E assim, meio já desistente, a viu seguir outro destino, uma outra calçada, e só se indagava como ela podia ir assim caminhando, ele que já havia desaprendido a ação de qualquer coisa.  


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Diversos

Se há céu, desejou que não existisse.


Acordou cético e havia alguma outra forma de estar? Do pagão ao judeu, do animal ao trânsito.


Daquela remota vez, sendo planta, dessas quietas, em que os ventos balançam também o tronco e galhos, imitava as certezas dos transeuntes. Todavia, se fosse planta e, ao mesmo tempo, homem seria incapaz de imitar-se.


Em seu último dia nessa condição, alguém que se manteve homem perambulava por uma calçada estreita. A planta, por sua vez, o observava do vaso de uma sacada, já estava habituada ao doméstico - nessa versão era jovem arruda. Diante de tantos pensamentos, o senhor se detinha à utilidade feroz das cordas:
Essas servem encolhidas ou esticadas, mas nunca como nascem: tortas. Assim como algumas plantas têm menos serventia vivas.


Outro que também caminhava pela estreita calçada incômoda lembrava, não sem ardor, da imagem de um antigo canavial: meio inclinado ao vento, em tarde de março, a brochar chuvosa, cheio de barulho. Era alguém de uma só imagem, constituído de uma única refeição – feito eu, que recolho na memória um único pulso reconhecível em qualquer fragmento: exemplar visão que não se afasta do objeto. E ainda assim, discretamente, o celebro – corpo e pulso inteiros.


De outro, o último, a planta só ouviu murmúrio. Esse passeava diante juízo de Deus. Corroborava sobre as noites, os diários,  os perfumes, a varanda, as avenidas, os restaurantes, as mangueiras secas, o clandestino, as rodoviárias e ainda em pensamento elegia razões para aquela ausência dolorosa, sem vergonha e sem distinção.


Olhou então a arruda e só pôde, sem mais nenhuma saída, arrancá-la, furtá-la, para sempre, da terra. Não houve tempo para conclusões: o ato já era pensamento.

domingo, 3 de julho de 2011

Um tanto...

Não adiantava desviar o olhar era nitidamente tudo aquilo: uma dorzinha visível em todos os estreitos do corpo.
Nos horários do dia, nos diversos que se repetiam iguais, sendo diferentes, minhas mãos se entrecruzavam afobadas, meus seios cresciam à procura de um confidente. Acreditava que meus questionamentos eram um tanto vãos, um tanto cabisbaixos, entretanto, não me deixava de correr a idéia de como não divinizar alguém, especialmente de madrugada, quando não mais está quente.
A tentativa de conversão em deus é muito dolorosa, menos pela idolatria e mais pela simples existência condicional de reconhecer-me menos, estupidamente inferior a alguém claramente semelhante.
Assim, minha maneira de conduzir os passos além da vontade de meus pés e de toda a outra multidão consciente - livre de ritos - é errada e proibida feito acender luz quando há sol: já está claro o que se é, não necessita de mais artifícios. Ás vezes, contudo, me defino cega e acendo luzes interiores a qualquer hora do dia, porque assumo, de alguma forma, por meio dessa loucura - outras vezes, sã - respeitosa coleção de poderes avulsos e, para muitos, desnecessários de uma existência vivenciada fervorosamente pelo gerúndio.