domingo, 26 de fevereiro de 2012

Entregar-se

Era quase inacreditável o fato dela permanecer ali por tantas horas sentada. Intermitentemente, ela se conscientizava em sustos. Constituía-se, na realidade, de um levante individual imenso e extraordinário que a levava a estar ali sentada, na calçada quente, de frente ao muro. 
O muro escondia inerte um terreno velho. 
A primeira vez que o viu,  atenta pela cidade, o muro era ondulado - talvez pelas pedras - e pintado de branco vulgar, daquele que nos dá vontade de fugir. Mas ela não se afastou e o tocou. Ele estava quente e a mão dela começou a dançar em toda sua extensão e, imaginariamente, a mulher o cravava com a mais bela inspiração surrealista. Apesar da falta de entendimento, ela seguiu seu destino, porém mais quente, quase dupla para repartir aquele novo preâmbulo. 
Dias passados, a mulher andava rumo quando começou a cantarolar mentalmente aquela canção nova, canção dela, que nascera: "Quem me dera navegar mar de eterno mar. Mar de lua cheia, mar de ribeirão: enxurrada de beira. Redenção da vida ..." E já estava lá, de frente a ele, esfregando seu corpo, em ritmo de dança no muro. Utilizou a brecha entre ele e a casa vizinha para fingir conhecer as pernas do seu parceiro, que agora poderia segurá-la em passos mais ousados. E ela podia ver algo de dentro dele: suas construções. Porém não se recorda do fim, de como partira. Só reconheceu, no outro amanhecer, que se apaixonara por ele. Decifrou seu próprio enigma: era mulher apaixonada pelo muro.
Depois ela desacreditou de sua descoberta. Na realidade, era só a companhia dele que a agradava. Simplesmente. Gostava do seu toque quente, pesado e das palavras que lhe saiam dos poros ocos. Contudo, com a saudade crescendo e a paz que ele a trazia, ela foi construindo que o amava e passou até a observar os outros muros da cidade cheios de cores, dizeres e imagens que ela compreendia, mas não contemplava. O muro inerte era o dono do descansar de seus olhos. Os mesmos que viram, com dor, o rabisco de palavras no branco vulgar do seu amor. Picharam palavras enigmas, como desenhos, com ódio. Ela voltou-se para a dor deste estupro, desta intromissão que, provavelmente, se infiltrara nos poros dele, em suas brechas. Resolveu então amenizar o dia e as palavras, ela pichou seus ditos de amor, ela escreveu:
Sei do que é feito por dentro. É duro, cinza e imóvel e pesado. Sei do que sou feita por dentro. Sou maleável, vermelha e móvel e pesada e por isto permaneço aqui: pelo nosso amor ao mundo cansado.
E hoje, tempos depois desse escrito e de tanta esperança, ela caminha descalça no asfalto quente até o encontro  dele. Assim começa sua procissão com as construções de pedra e sentou-se na calçada e depois subiu o muro - no topo estavam cacos de vidro - e com as mãos ensaguentadas e o corpo acomodado, deixou-se penetrar pelos vidros. Deixou o elemento de sua vida descrito na massa fina e branca. E lá permaneceu sentada, epifânica, enquanto o muro tragava seu sangue e a imitação de sua dor.

   



terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O falso singular

Havia o desejo incessante de render-se à piscina: era de azul saciável. Mas ela não podia, não a deixavam - era obrigada a permanecer na polidez da terra. 
Era domingo e festejava-se, ainda que ela não soubesse a razão e nem a questionava, uma vez que seus pormenores individuais eram realmente mais importantes do que a névoa de adultos transeuntes. 
Sua intenção era simples. Ela pronunciava, mas parecia inaudível: os outros não atentavam à voz. Desde a manhã, ela apreciava os efeitos da água, porém era sempre necessário esperar! Aguardar despertar nos outros, os mesmos desejos dela. Era mumificar-se à espera do destino alheio! Foram exaustos momentos de expectativa: tinha de esperar o Sol se aprochegar ao dia, na posição exata. Esperar até a querência do universo!
E chegou o instante, sabe-se lá por qual razão algum conectar da vida libertou esta lasca: ela sentou-se à beira fria, esfregou os pés na água e pulou.
E chegou o instante: já na piscina, ela compartilhou da realidade - não de tanto a desejar, mas de a aprovarem. Porém, de alguma forma, dentro, sentia que as escolhas individuais não existem ... era como se existisse água somente aos domingos.

Etapas

À noite:
pensamento.
De dia:
Corpo distinto.
Se creio em Deus?
- Dele sou descendente.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Celebração

Descritas.
Ainda em diversas formas.
Amizade.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Como sentir desnudada

Enquanto a mulher seguia o mar diariamente, sentia. 
Tateava o pôr-do-sol envelhecendo a claridade.

Sendo meio da moda, aquela senhora caminhava pela praia. E, em alguma vez, ela percebeu. Inexplicavelmente, alguma de suas suposições surgia da areia, pois ele gastava o corpo ali, talvez em mais de um dia da semana, entregando-se ao vôlei.
Discretamente, de roupas claras, ela descobriu - sentada em um novo lugar - que ele jogava somente aos domingos em horas de sol. 
Seus outros dias deviam ser luas, pensava ela, que em si ao sol via a noite. Mas, agora, cheia da descoberta, as noites eram, ao menos, de primavera. 
Ela passou a frequentar o mar também, seus pés tocavam, e antecipava sua ida à praia, aos domingos, pois necessitava vê-lo. Era bom conhecer as poses inéditas que o corpo dele podia até perpetuar se quisesse, olhá-lo assim era uma espécie de cura do futuro. E, ainda era morte, pois sendo original e indolor. 
Nos 68 anos que a vida lhe permitia, ela se inaugurava dele sem mais pensar. Inquestionava. 
Porém, foi surgindo uma vontade de não ir embora, de permanecer ali. Mesmo em dias da semana, em julho, na chuva. Ela resolveu se mudar: recolheu empréstimo, a loucura da família e vendeu a antiga casa e comprou um apartamento, de um quarto e um espaço para os livros e a música, no quinto andar, de frente ao horizonte do mundo, em frente à rede dele e, assim, pôde imaginar o quanto aquele espaço podia ser ausente ao mesmo. E tudo com seu corpo tão movimentado quanto à imensidão do que há de externo. Vê-se o mar.