segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O medo

O medo perdeu-se
da noite e do dia.

Ficou o vazio do medo:

espaço com cheiro falso de brisa,
à espera de todas as coisas.

TV

a tv
é duas sílabas
turvo.

Definido

tecer laços
é criar por rompê-los
com a morte
ou com as tendências
das vontades.

A casa

a casa é janela
é porta
é morada.
a casa é feita de gente
gente que constroi
gente que mora
pessoa que sonha com outra coisa
pessoa que sonha em outra casa.
a casa é exausta das humanidades
e a riem, a riem porque é acúmulo.

mal sabem que é passagem de quem sempre morre.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Meio

era como estar em uma escada

temendo

o topo e o baixo

em algum degrau 

contagiando os transeuntes 

só parados no chão,

sem a proporção do meio


Saudade


falamos de tardes,

de ditados,

de horas.

mas os distintivos não estancam o coração.

a vontade existe,

a imagem é aquele significado sem palavras.

a questão é que 

tardes,

ditados,

horas

não resolvem nada.


















domingo, 16 de dezembro de 2012

Tudo há de ter um fim

antes que logo.

depois
antes de acabar.

amor
já ao acabar da dança.
 
recordação
logo depois dos gestos.



sábado, 8 de dezembro de 2012

Mundo

segue uma letra
depois de uma letra
e se há o mundo. de qualquer lugar.
O mundo é uma caligrafia.

Destino Navegável

Meus olhos testemunhavam-no. Viam-no mais que inteiro: viam seus reflexos, seus mormaços.

Ele se sentou à minha frente, de olhos grandes e existentes.
Fingíamos que o mundo todo habitava aquela mesma tarde, aquele espaço entre nós: aquele todo era a sós.

- Distante?
- Ainda mais perto.
- Perto?
- Do destino.

O mundo aplaudia, só com o início da noite, como por toda a eternidade, os abalos que causam tal encostar de frente de joelhos e olhos. Abalos que não se desperdiçam.

- Assim?
- Não.
- Não é destino escrito, prescrito?
- Destino navegável.
- Navegável?
- Há sempre caminhos, de qualquer jeito, em mim, navegável.
- Sou barco?
- É pedaço que leva a mim no houver, quase até secar.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O mar de Paraty

O mar não é água.

O mar é onda o tempo todo.

O cuspe é água.

A chuva é água.

O mar se enche na beira,

quase se fazendo ponta,

e calado cai onda.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Dúvida

di-vi-dir
entre ver|ti|cal e
ho-ri-zon-te.
noite que sobe
e cai. ainda (a)clara.

domingo, 11 de novembro de 2012

Data

O mundo me deu uma data
(é a única que sei)
A minha última data é os outros que saberão.


Mas todos os dias são data,
pra qualquer um
ou alguém.
Pra quem sabe a data
ou pra quem só vive nela.
E data mais importante
nem sempre é a de nascimento,
mas a do encontro.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Referencial

Aí há tantas coisas que brincam de outras.

Movimento que é parado.
Elevadores que são chão.
Retrato que é miragem.
Água que é sede.
Palavra que é previsão.

Mundo que é não existe.




A falta do amor nas coisas

Eles deveriam desatar os dedos. Um, sabia-se, não cabia mais no outro. 

Ele sentia-se restante, um resto da cidade - que não refaz absolutamente nada, nem o mesmo caminho ou frase. Foi preciso,  então, alguma vez, admitir o que se é: homem incapaz.
O outro saíra. investigando os sãos, a multidão dos que creem na vida, para compartilhar das certezas.

Ele ficou à janela. 
Depois arrastou os pés até a cozinha, mas  as coisas não se mexiam, as coisas não são vida. Só havia o que é mudo, parado, incompreensível porque não fala. Tudo era o seu corpo, que estava silencioso, quase não funcionando. 
Deitou-se no sofá, aconchegou-se em suas cores, e pôs saudade.
Entregou saudade até na falta de juízo, de saudar os botões que ainda hão de se levar ao chão, como todos os amores.

Anoiteceu e não era mentira. a noite e eles. 
Eles quase sem olhos para o seguinte.

domingo, 28 de outubro de 2012

Horas

O escândalo da manhã 
é de que as horas não existem.
Horas não hão.
As horas não são.
Não há resposta.

Não há resposta sem o desconcerto
das coisas que não as seguem
- por quem ninguém ora.

sábado, 20 de outubro de 2012

Ilusão

fui quase muitas situações.

um quase descartável.

quase que nunca acontecia.


fico ainda completa

e quase.

porque realiza em mim

uma parte:

a ilusão.







sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Uma imagem da Saudade

estão as luzes da avenida. vorazes.
são estátuas da noite.

vêem, intermitentemente,
o que passa
e o que os conduz.

sempre leva à dúvida,
a nós e às lâmpadas,
se o que passa,
às vezes,
só atravessa -
dando sempre para ver,
no outro lado.

O que dá a distância
é quando as luzes apagam.









 









domingo, 7 de outubro de 2012

Outubro

As nuvens de Outubro

Não são as nuvens de outros meses.

Há tempos elas viajam até o Atlântico.

Há caminhos. procuram o Ocidente.

Desfiando a primavera. Suas sombras.

Levando o céu de lugar.







sábado, 29 de setembro de 2012

Ano

O ano,
um ano,
é um mês de cada vez,
um mês uma vez só.

O ano é
os dias não esquecidos,
passagem da meia-noite
de cada um.

O ano,
um tempo em dança,
dançando de um outro mundo
para ainda outro mundo.







sábado, 22 de setembro de 2012

Fósforo


O corpo gasta.

Olhe só os calos.

Olhe só os quantos calores nos tiram a alma.

Os cabelos que caem,
o corpo vai diminuindo.

A gente vai perdendo, sem até perceber.

domingo, 16 de setembro de 2012

De todos os lados

Diante da rua,
olho pra todos os lados:
pra fora
pro céu
pra dentro
pro subsolo.

E de dentro brota fora:
de mim se ouvem palavras,
de fora vejo cores,
da casa nascem os homens
que povoam o mundo.

Dele saem pensamentos
que são ideias ou paixões,
que, mesmo em dias nublados,
não cansam.


Já do alto ao baixo
é a chuva ou é o sol
ou ainda é a mão da criança
que conta com o sossego do pai.













sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Pessoa-s


Cada pessoa
conhece outra pessoa.
Que tem jeitos,
síndromes,
maneiras de mastigar e de abrir os olhos,
devaneios,
mãos ou não.

Cada outra pessoa
guarda em si outro alguém.
Que deseja outros jeitos,
novo corpo,
reais devaneios,
e mãos que sirvam para marcar caminhos.

domingo, 2 de setembro de 2012

Ilusões Voluntárias

Adiante,
de dentro para mim - diante.

Uma espécie de onda,
que sempre resta fresca -
que sai de mim, à frente.

Do meu interno
- oceano quente -
parte a onda sem marola,
espumada,
brindando junto à areia:
liberta daqueles meus anseios irrealizáveis!











sábado, 25 de agosto de 2012

A Lua do Dia

A Lua e mais três estrelas 
me seguem -
não fogem dos meus olhos,
descaradas.
Apontam para o teto de meu corpo.
E ao amanhecer,
utopiam o dia,
brincando de minhas sombras.

sábado, 18 de agosto de 2012

As pedras e o amor

À Fernanda Simões Lopes


As pedras,
é possível uni-las, as pedrinhas, em um monte.
O amor não.

O amor que tem
suas cores subterrâneo ou
destino
(como as pedras)
mas que não se une por vontade alheia,
às mãos dos homens,
o amor é leve a estas rédeas.

domingo, 12 de agosto de 2012

Palavras Individuais

- Jasmins, jardins, jabutis.

Ela recitava rimas. 
Palavras de rimas que deveriam crescer nela:

-  Silêncio, beco, dentro.

(Ainda que o cultivado silêncio partisse em fala.)

- Dito, indefinido, improvável.

- Vento, varre, catavento.

- De, mim, para, (qual), fim? 


sábado, 4 de agosto de 2012

Poema

Poema é desperdício,
onda de palavra interrompendo palavra,
de tanto. 
 
Poemas apagam.

Poemas são feitos para extinção,
pois únicos.





domingo, 29 de julho de 2012

Indiferença às coisas

Das coisas que se joga fora - que utilidade têm?

Se não há transfusão dos sentimentos
E os objetos já nascem mortos.

Se caem e não (se) ferem.

Se o que nos resta de mais importante nas mãos
são os dedos?









domingo, 22 de julho de 2012

Despertar

"Já amanheceram os seus dedos ao som do piano." - era suspendendo os silêncios que recebíamos as auroras.
Ao nascer, definitiva, a manhã, ele retorna - exausto das grandes composições e dos sentimentos intensos e sem finitude - à procura do restante sonho, onde eu - sei - estive, e da realidade: em que meu corpo compreende toda a temperatura necessária e os olhos fechados.
Ali, em pensamento, aguardando seus passos subirem as escadas, fingindo inédito, firmo a ideia de que as auroras o celebram tanto quanto eu: são as luzes do sol.

Mapa - talvez de uma certa saudade


As ruas permanecem sempre,
Nos mesmos lugares,
Pilotando gente.

A gente, às vezes, permanece, sempre,
Em um mesmo endereço.
Contando as mesmas
Chuvas e portas.
Bem crendo na previsibilidade.

Porém, ainda resta gente, que conhece
os diversos itinerários,
Mas que, também, às vezes, para, estático.

(Diante daquela mesma porta sem saída)















                                     

sábado, 7 de julho de 2012

Frescor

Com a comida entre a boca e os dentes - soprou-lhe uma sensação: ser esposa. Via-se num quarto de luz acesa, com as janelas abertas. 
Janelas transmissoras do vento, que terminava por tomar alguma parte dela: esposa onde o vento varre as suas partes.

Imaginando-se esposa só, apreciando - tal como janeiro - a dimensão das paredes brancas, o eco que ali cabia, o descanso de uma noite.

E mulher que sabe que há quem, outro, que dela aguarda o que dela - ela deixa fugir, no vento. 

Era o melhor dos gostos rápidos.

sábado, 30 de junho de 2012

Marinho

Amanheceu marejado. Estivera, em sonho, no oceano.

Nele, porém, o vestígio deste sonho permanece, sentia até que alguma parte sua - sem inchaço ou dores – salgava. Ele – tão conhecido, dito e sabido bruto – sonhou pela primeira vez com o oceano e que lá esteve a acalmar transatlânticos, a caminhar os olhos aos navios que soavam tristezas, doloridos de aportar na terra.

Martin não transmitia, não permitia sensibilidades, mas o oceano o arrebatou. A água infiltrara-se nele como se nunca houvesse sentido sede. E o mar que em si nascia não o autorizava a seguir o mesmo. Ele - que jamais distinguira a temperatura do café, que jamais arquivara suas fotografias em álbuns e de quem não se reconhecera registro de que pronunciasse mais de dois adjetivos em uma mesma conversa - este homem, agora, após o espasmo do seu sonho, percebeu o oceano em suas mãos: as águas despencando ou nas candeias a refletir seus traços, nunca vistos tão perto, tão calmos.

Às vezes, detinha-se sentado, a imitar o mar, reconhecendo as movimentações internas – até então invistas. Martin, então, ofereceu oferendas – em segredo – à Iemanjá. Tornou-se devoto de sua própria mudança. Seus novos hábitos prosperavam! Sua casa solitária se espantava. Ele não escondia mais, havia permissão para todos os lados de si: apegou-se às mãos, passou a escrever com os dedos canhotos. Seu corpo desmanchou a ideia de que é noite antes de dia e dia depois de noite – era o oceano no momento de dormir, era água.

Agora ele está água.

Transparente a quaisquer dos olhos.

domingo, 24 de junho de 2012

Lento

Vi-me. Impossível
de refletir na contemporaneidade.
Na metrópole.
Nos corredores. em horário de pico,
é impossível refletir sobre os ainda corredores 
e algo mais que se veja, que se queira.
Congestionam-se, dentro de mim -
talvez pela vida inteira -
pensamentos.

sábado, 16 de junho de 2012

O rabisco

Era belo - à letra de mão - o nome dela. Belíssimo ainda mais seria se vindo nome fosse dos dedos dela, pensou. 
Era uma experiência - que ela ficou a vigiar: 
o rabisco: 
aquelas letras que diziam outra mulher, que significavam existência - melhor que fotografias e segredos, porque as letras causam voz - era,assim, possível falá-la a tudo que escuta. 

O rabisco 
de formas azuis, 
que molhado, 
derrete. Feito as peças que desabam do corpo da vigia, temerosa de encontrar ainda outras palavras que reflitam ainda mais de dentro - mais que o nome dela.    


domingo, 10 de junho de 2012

Canto de todas as partes

A voz atando palavras para compor seu canto - estando, assim, à procura do soado do mundo - palavras de todas as línguas, que de obra-prima despertassem um coro humano de "nossas".

- Nossas. 

Exclamação arranhando tudo o que há de humano - dinamites, castelos, carros, coleções, pessoas - criando fincas para o canto.
 

Um canto transnacional.
 

domingo, 3 de junho de 2012

Cotidiano


O dia feito peça,

à imagem do origami:

Dobre-o nos verdadeiros anseios

- dorminhocos ao fim da tarde,

exaustos.

domingo, 27 de maio de 2012

Fotografia Individual

Que eu fosse de outro lugar.
Desses, poucos,

Lugares.

Sendo menos pouco
Do que estes lugares raros.
Seria o ineditismo 
que nunca se inaugura.






Os corpos da eterna meia-noite

Incometiam em outras horas. 

Era - diante deles - sempre meia-noite naquele meio-dia.
Viam a meia-noite dos olhos - em sol pleno. Aí: seus corpos só sabiam se tatear à busca da noite azul que se encobre, se instalando indefinida.
E já em falso temor do amanhecer - com o real pavor de que florescesse a luz, que o real despertasse - eles desperdiçavam olhares de não mais caber naquele beco. Atreviam palavras originais - palavras de noite e de aurora - para desmemorar o fim.
E depois -  já quietos -  abalavam-se no mesmo ritmo, similares: corpos: dois corpos. 
Corpos que liberavam imensidão, feito o topo do precipício.
E cansados jamais solicitavam a aurora, a claridade ofuscava os olhos já tendenciosos ao par. 




  

sábado, 26 de maio de 2012

Iscas

Horas,
incontáveis horas.
De serem iscas
daquelas perpétuas vontades
sem relógio, sem momento. (sem paz)

Que Deus acolha a falta de ironia destas palavras.

domingo, 13 de maio de 2012

O Regente




Seus braços se moviam quase submarinos, além da superfície dos homens.

Os braços diziam: "Leve-os, leve-os todos à barca e os joguem." E o homem nos conduzia: da cidade à areia - da areia ao mar - do mar ao fundo.
A barca era ele: o homem dono dos braços - que também se afogava, submerso.

Nós, em pouca multidão, distinguíamos o encantar da sinfonia - que ensaiava pelos ombros, pêlos, terno, dedos direitos e canhotos daquele homem. Um homem de braços e outros membros que regia as fantasias de nós.

Seguimos.
Onde quer que seus braços apontassem, para lá também sentíamos. E sentíamos um cada vez maior. E acima de nós, o mundo já pesava.
Era o fundo: distrito caudaloso.

Estávamos no abismo da força daqueles sons - enquanto nada houvesse, se era tudo. Era a execução da orquestra!

sábado, 5 de maio de 2012

Do sentir incorreto

Independe da fase. Do trabalho.
Independe das horas. Da tarde.
Das quantas tosses. Independe.
das contribuições tributárias.
Independe das posições. Do recôncavo.
E de principal
Independe do que o corpo não sabe fazer sozinho. 

domingo, 29 de abril de 2012

Urgentemente humano e diário

Gustav Mahler


A quarta-feira gesticulou sinfônica: abrindo as cores. 

Mas a vontade desta quarta-feira era urgente, cheia de figas: era reconhecer o dia como uma espécie diferente da sua. 

No distrito em que os sete dias da semana se enfileiram, cada um assume forma díspar - para amanhecer o mundo de diversas maneiras, sempre brotando ineditismos - diga-se que os dias também dispõem de livre arbítrio. 

À quarta-feira, assim, restou o disfarce: não permitiu acontecimentos memoráveis, que não pronunciassem seu nome em telejornais! A ideia era ser quarta-feira assoviando durante vinte e quatro horas - assim desapercebida. E cheia de pisos leves, no brotar da quinta-feira, escondeu-se diante das letras de um outdoor. E de lá foi descobrir o mundo dos outros dias.

Quietinha, a quarta-feira foi se apequenando, tentando ser outra coisa: talismã, ventura ou objeto tangente - algo que rolasse sobre a terra. Mas embevecida, à quase luz da noite, ela testemunhou o nascer do dias dos homens. Em salão majestoso, os contou - que poucos - desvendavam todas as coisas, em partes abriam os homens, em partes transladavam os horários e as ordens internas. Desfaziam. Eram os homens orquestrando qualquer superfície, homens que gesticulavam sinfônicos, em partes, em instrumentos. 

Homens díspares que criavam.

Era o belo,

o mais belo

de qualquer homem ou dia.  









domingo, 22 de abril de 2012

Antecipamentos de novembro

Te vario
assim:
diante do céu
e como hei de escapar de fugir deste infinito?

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Daquela Noite

Ah,
de ti que ontem eras
Corpo de Mulher.

Corpo de Mulher que parece
estrada.

Estrada branca durante a noite,
Dicionário de Todo o Sentimento.
És caminho por onde se rimas as quietudes.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Esvaziamento

O café-da-manhã estava à mesa, a mesa de breve tom alaranjado. Era como se escoasse continuamente um pedaço dele. Da fome que ele não sentia.
Ele permaneceu na cadeira a vazar: suas invontades infiltrando externamente em seu corpo. Recomendaram que ele estivesse nesta falsa enfermidade por alguns dias. Na exata posição de partida - os olhos rebentos de lugar definido.
De si escoavam pormenores e, pelo cheiro era possível identificar que, dentro dele, havia um outro nome, as denominações outras de outros. E quando desconfiado deste interno, se angustiou com a falta dele mesmo e decidiu se desencher, furar-se e e recobrar-se seu.
Ao longo dos dias, sua cozinha foi somando líquidos e, concomitantemente, uma crosta se fixava em sua face, em seus braços, sem suas pernas, tornando-se irreconhecível. Era um novo rosto, um novo corpo, ainda que menos atraente, ainda que indefinidamente mais magro, quase de uma espécie inútil. Mas já estava próprio. para incrementar-se das idéias e sutilezas suas. Ele não era mais sociedade.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Lá de onde eu gosto


Sertão
De casas de óleo
E alegorias sem fim
Vi a morte como lá nunca a vi
E as mulheres com lenços na cabeça
E o rio
Travado sem trevas
Trancado nos baldes de água
Os fios de terra molhada.

O canto do chão
Roça de passos verdes e fantoches.

A rede que balança,
A trela das danças
A providência da hora
A hora que chega e se esparja
Palha,
Cativeiro do suor.

 







sábado, 17 de março de 2012

A concepção do tempo que apaga

Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo o sentimento
E bota no corpo outra vez
(Chico Buarque)




Há tempo que precisa ser dito em alguma ruela da cidade, em algum início do confim da Terra.

O tempo precisa dizer.

Dizer assim como o tempo: longo:

Espelhando em palavras as manifestações causadas por dentro – o tempo conhece tudo.

E ainda inverter a Lua: trazê-la perto e lá, no alto, tornar belo aquilo que o tempo engole – as histórias de cada um. 

Invenção que foge ou finge e não se encontra. E ela existe.

Ainda que desajustada,

Ainda que não creia,

(Em utopia de um, onde estão dois.)

Ainda que não acredite, o tempo sussurra.



terça-feira, 13 de março de 2012

Dimensão Noturna

Quando a lua se recolhe
As nuvens a envolvem
num cobertor fininho
desses de mendigo
- a colorir a noite -
Mas não os vemos, 
porque estamos diurnos.

domingo, 4 de março de 2012

O jantar de vidro

Azedava-lhe desejar coisas que consciente sequer recordava. E foi cansando de variar entre as lojas de decoração e de utensílios domésticos. Resolveu armazenar essa vontade imemorável: inaugurou a esperada coleção de copos de vidro, dispostos em ordem degradé - cores para entrelaçar ao dia.
E ele observava, durante a manhã, seus noventa e sete copos enfileirados, ultrapassados pelo sol, e, de repente, abateu-lhe uma fome desconcertante. Aquele desejo inlembrável configurou-se certo, sabido: uma fome de desvendar o sabor da cor de cada um dos seus vidros. ou se convencer de que todos se reduziam ao sabor do fogo que os produzira.
Com um pequeno martelo de madeira - de amaciar carne - ele quebrou delicadamente pedaços de alguns dos copos e os misturou. Fragmentos e mais fragmentos unidos, sem liga, como pedaços apetitosos de uma comida desconhecida.
Dedicou-se algumas horas à degustação daquele quadro pontiagudo de cores que poderia representar qualquer coisa. E não reconhecia sabor e estranhou até a ausência do peso da refeição, foi um fato consumido.
Não rompera veia e, muito menos, os cacos de vidro prejudicaram sua saúde, mas a cada novo dia via o mundo unicolor. Auroras verdes, tardes marrons, florestas roxas... Ele fora se transformando em vidro, meio imóvel, recolhendo o mundo em diversas intensidades de iguais cores.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Entregar-se

Era quase inacreditável o fato dela permanecer ali por tantas horas sentada. Intermitentemente, ela se conscientizava em sustos. Constituía-se, na realidade, de um levante individual imenso e extraordinário que a levava a estar ali sentada, na calçada quente, de frente ao muro. 
O muro escondia inerte um terreno velho. 
A primeira vez que o viu,  atenta pela cidade, o muro era ondulado - talvez pelas pedras - e pintado de branco vulgar, daquele que nos dá vontade de fugir. Mas ela não se afastou e o tocou. Ele estava quente e a mão dela começou a dançar em toda sua extensão e, imaginariamente, a mulher o cravava com a mais bela inspiração surrealista. Apesar da falta de entendimento, ela seguiu seu destino, porém mais quente, quase dupla para repartir aquele novo preâmbulo. 
Dias passados, a mulher andava rumo quando começou a cantarolar mentalmente aquela canção nova, canção dela, que nascera: "Quem me dera navegar mar de eterno mar. Mar de lua cheia, mar de ribeirão: enxurrada de beira. Redenção da vida ..." E já estava lá, de frente a ele, esfregando seu corpo, em ritmo de dança no muro. Utilizou a brecha entre ele e a casa vizinha para fingir conhecer as pernas do seu parceiro, que agora poderia segurá-la em passos mais ousados. E ela podia ver algo de dentro dele: suas construções. Porém não se recorda do fim, de como partira. Só reconheceu, no outro amanhecer, que se apaixonara por ele. Decifrou seu próprio enigma: era mulher apaixonada pelo muro.
Depois ela desacreditou de sua descoberta. Na realidade, era só a companhia dele que a agradava. Simplesmente. Gostava do seu toque quente, pesado e das palavras que lhe saiam dos poros ocos. Contudo, com a saudade crescendo e a paz que ele a trazia, ela foi construindo que o amava e passou até a observar os outros muros da cidade cheios de cores, dizeres e imagens que ela compreendia, mas não contemplava. O muro inerte era o dono do descansar de seus olhos. Os mesmos que viram, com dor, o rabisco de palavras no branco vulgar do seu amor. Picharam palavras enigmas, como desenhos, com ódio. Ela voltou-se para a dor deste estupro, desta intromissão que, provavelmente, se infiltrara nos poros dele, em suas brechas. Resolveu então amenizar o dia e as palavras, ela pichou seus ditos de amor, ela escreveu:
Sei do que é feito por dentro. É duro, cinza e imóvel e pesado. Sei do que sou feita por dentro. Sou maleável, vermelha e móvel e pesada e por isto permaneço aqui: pelo nosso amor ao mundo cansado.
E hoje, tempos depois desse escrito e de tanta esperança, ela caminha descalça no asfalto quente até o encontro  dele. Assim começa sua procissão com as construções de pedra e sentou-se na calçada e depois subiu o muro - no topo estavam cacos de vidro - e com as mãos ensaguentadas e o corpo acomodado, deixou-se penetrar pelos vidros. Deixou o elemento de sua vida descrito na massa fina e branca. E lá permaneceu sentada, epifânica, enquanto o muro tragava seu sangue e a imitação de sua dor.

   



terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O falso singular

Havia o desejo incessante de render-se à piscina: era de azul saciável. Mas ela não podia, não a deixavam - era obrigada a permanecer na polidez da terra. 
Era domingo e festejava-se, ainda que ela não soubesse a razão e nem a questionava, uma vez que seus pormenores individuais eram realmente mais importantes do que a névoa de adultos transeuntes. 
Sua intenção era simples. Ela pronunciava, mas parecia inaudível: os outros não atentavam à voz. Desde a manhã, ela apreciava os efeitos da água, porém era sempre necessário esperar! Aguardar despertar nos outros, os mesmos desejos dela. Era mumificar-se à espera do destino alheio! Foram exaustos momentos de expectativa: tinha de esperar o Sol se aprochegar ao dia, na posição exata. Esperar até a querência do universo!
E chegou o instante, sabe-se lá por qual razão algum conectar da vida libertou esta lasca: ela sentou-se à beira fria, esfregou os pés na água e pulou.
E chegou o instante: já na piscina, ela compartilhou da realidade - não de tanto a desejar, mas de a aprovarem. Porém, de alguma forma, dentro, sentia que as escolhas individuais não existem ... era como se existisse água somente aos domingos.

Etapas

À noite:
pensamento.
De dia:
Corpo distinto.
Se creio em Deus?
- Dele sou descendente.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Celebração

Descritas.
Ainda em diversas formas.
Amizade.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Como sentir desnudada

Enquanto a mulher seguia o mar diariamente, sentia. 
Tateava o pôr-do-sol envelhecendo a claridade.

Sendo meio da moda, aquela senhora caminhava pela praia. E, em alguma vez, ela percebeu. Inexplicavelmente, alguma de suas suposições surgia da areia, pois ele gastava o corpo ali, talvez em mais de um dia da semana, entregando-se ao vôlei.
Discretamente, de roupas claras, ela descobriu - sentada em um novo lugar - que ele jogava somente aos domingos em horas de sol. 
Seus outros dias deviam ser luas, pensava ela, que em si ao sol via a noite. Mas, agora, cheia da descoberta, as noites eram, ao menos, de primavera. 
Ela passou a frequentar o mar também, seus pés tocavam, e antecipava sua ida à praia, aos domingos, pois necessitava vê-lo. Era bom conhecer as poses inéditas que o corpo dele podia até perpetuar se quisesse, olhá-lo assim era uma espécie de cura do futuro. E, ainda era morte, pois sendo original e indolor. 
Nos 68 anos que a vida lhe permitia, ela se inaugurava dele sem mais pensar. Inquestionava. 
Porém, foi surgindo uma vontade de não ir embora, de permanecer ali. Mesmo em dias da semana, em julho, na chuva. Ela resolveu se mudar: recolheu empréstimo, a loucura da família e vendeu a antiga casa e comprou um apartamento, de um quarto e um espaço para os livros e a música, no quinto andar, de frente ao horizonte do mundo, em frente à rede dele e, assim, pôde imaginar o quanto aquele espaço podia ser ausente ao mesmo. E tudo com seu corpo tão movimentado quanto à imensidão do que há de externo. Vê-se o mar.


sábado, 21 de janeiro de 2012

Retalhos

Ela tanto sonhou, às breves, com uma nova ida. 

- Eu ia naquele outro supermercado, mas a promoção desse aqui era muito melhor, precisava garantir a carne.
- Pois eu tive a mesma idéia. O peso até vale a pena.

Ela se concentrava na conversa - espécie de novo mundo. E ali, em sua nova habitação, da qual desconhecia os aspectos exteriores, já experimentava as costas no tecido velho da bolsinha - e não era tão confortável quanto imaginava, porém, seu abrigo anterior era muito menos aconchegante: era frio, pequeno e, a todo momento, durante o dia, ela enxergava o mesmo rosto, que abria e fechava a gaveta.

A moeda viera do supermercado.

(O nascimento de uma moeda é um sistema cego. Desconhece-se. É necessário o olhar do alheio para identificar o próprio valor.)

Na bolsinha de pano vermelho brotado de crochê - em formato de passarinhos roxos, azuis e amarelos de asas abertas - as moedas, para aquecer seus corpinhos de metais, conversavam. Uma, de valor de R$ 0,50, viera do Rio de Janeiro - já até conhecera o Arpoador. Testemunhou breve momento de história de amor, quando ela desejou claramente com os olhos. Outra moeda, de também R$ 0,50, comentou como fora bem tratada por um bêbado em dia de sol. E outra, a menor das moedas, de R$ 0,05, narrou sua experiência dolorosa, onde esteve amassada, por dias, por um livro de muitas páginas. E ali, amassada, pela contra-capa, ela até se recordava de algumas palavras do romance: tratava-se das peripécias que ocorrem quando se decide viver em um telhado no Iêmen.
Mas ainda havia as histórias da vista do mundo e, às vezes, o ar de fora! 
A partir da bolsinha, na sinfonia do abrir e fechar do zíper vermelho, as moedinhas sempre encaravam novos rostos que as usurpavam para uma nova ida: a despedida da moeda é sempre a palavra e o número, o preço. E lá se iam ... E as moedas não têm morte. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Fotografia XV

Parece um impossível do mundo
(Que se abate, vezes, nos estandos)
Exatamente onde você se encontra.
Na invenção lenta
da abertura de outras necessárias trilhas.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O Velho Gigante

Um velhinho gigante se aproxima do chão.
Não é mais cego,
Não é mais surdo.
É velho.

Um velho gigante
que não assusta as crianças.
Porque seus olhos são escuros.
Preenchidos - pensam elas -
das todas distâncias,
ainda que apertadas. No gigante.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Fotografia XIV (De alguma praia de Los Angeles) - Prosa do mar

A dicção da praia
É além da beira-mar
Seja som do visto do mundo
- as histórias iguais refletidas -
Em distâncias quase inaugurais.