sábado, 19 de março de 2011

Toda Ângela e o mundo

"baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas."
(A Máquina do Mundo - Drummond)





Acordou já completa continuando gente. Hoje, ela iria conhecer o tudo por meio da satisfação. De pijama azul, ela concebia a janelinha, a focinheira e o trator. Ainda assim, decidiu que permaneceria na cama, ou seja, era o mesmo de permanecer no mundo, nunca se sai vivo dele.
Conhecia as horas e todas elas já estavam acumuladas, antecipadamente, em Ângela, que as sentia presas em suas paredes internas e sabia até de suas cores, pois, hoje, sem saber nomear, a Máquina do Mundo se abrira dentro de si. O todo já lhe causava desconforto, uma dor suspeita, e assim Ângela a desejava, aquela dor que não pediu a sei lá quem para ser completa.
Às 10:47, o telefone tocou. Ela imaginou que o destino havia preparado o descuido da manhã. Sua completude, ainda que pesasse, aceitava telefonemas?
A totalidade já a cansava.
Atendeu o telefone.
Era uma colega, que investigava seu estado de perfeição. A reação de Ângela foi de absurdo - ainda que não soubesse classificar o que sentia, permanecia em eterna situação de inchaço. A quase colega revelou que o dia de completude foi pago pela empresa em que trabalhavam, segunda ela, era uma oportunidade única, um novo metódo de treinamento. Em disfarce, Ângela pergunta quando acaba o tal dia.
- No horário do fim do expediente, às 18 horas.
Desligou o aparelho.
A mulher, ainda que completa, voltou para a cama e não atendeu mais o telefone. Soube, então, dos dotes da completude moderna e, ainda sem saber, mas prevendo inconscientemente, como pedia o bônus do dia, cochilou querendo ser Drummond em uma estrada pedregosa de Minas Gerais. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário