terça-feira, 5 de abril de 2011

Aquele definitivo resquício

Tudo o que o envolvia era um antes e um depois e eu ainda nem desconfiava disso. E, por muito tempo, permaneci assim: sem saber de nada, hipnotizada não sei se pela beleza ou pela feiúra, mas em algum instante, ele se tornou definitivamente belo!
Não conseguia compreender como ele podia ser assim, naturalmente, tão especial da primeira vez, no ato de estréia. Pensava então por que eu, afinal, tinha de ser olhada uma segunda vez, deixando de ser inédita. O meu especial, por acaso, sofria de hepatite, era precário? Eu acreditava ser especial, mas ele estava anos luz de mim: da maneira de me olhar fixamente - se é que seus olhos se fixavam em mim ou no que ele imaginava que eu era – até a maneira de dizer o quanto eu estava quente, enquanto, na realidade, eu estava fria. É o que todos eles dizem. Mas, talvez, só ele percebesse o meu desejo em encontrar alguém que me dissesse que eu estava quente, pois mesmo sendo mentira: eu queria parecer outra pessoa.
Ele conhecia o mundo e, para mim, o mundo é o que existe. E a presença desse moço era tão contínua que, repentinamente, eu acreditava em Deus e em toda a construção do universo: eterno e largo como o sorriso dele. Jamais ele iria a Ibiza ou Zaragoza comigo. Mas ele foi, em mim, no que me é mais secular: me moldou lírica. Fazia anos que não era composição assim intensa, daquelas que a gente soma as notas do bolero, da vinheta da TV e do barulho da gaveta. Simplesmente era complexo aceitar que aqueles dentes largos e gengivas à mostra e aquela barba, feita no mesmo dia, se registrassem densamente na minha experiência do que eu não entendo e gosto muito. Às vezes, até penso, aliás acredito, que ele foi meu primeiro desenho, meu primeiro pôr-do-sol, traçado com dez riscos, minha primeira vontade.
E eu perguntaria, sim, eu perguntaria. Gostaria de ter instaurado um diálogo meu, que partisse de mim. Qualquer coisa que fizesse das palavras dele, minhas.
E, além disso, restava ainda o corpo: a maneira como ele não me tocava, fazia com que eu pensasse no singular de toda uma multidão de gente. E, afinal, em estado de descoberta, ele era o meu singular do mundo inteiro - a minha falta de morfema que ampliava todo e qualquer sentido - desse mundo mesmo que existe.
Bastava olhá-lo, clandestinamente, para suspeitar de que o itinerário do ônibus o continha mais do eu. E, de maneira infantil, eu desdenhava ironicamente de todos os letreiros cor de néon da grande cidade.
E de repente, ainda que eu não sentisse dor, ele foi embora: desinteresse unilateral.
Depois disso, nem sei mais. Já desgastei o olhar daquela foto, cujos caminhos desdobra e me convida subitamente à dança de não sei qual corpo, já que o meu perdi. Hoje sou completa ausência de uma lembrança e ele, mera vida que segue, contudo, ainda em mim permanece, não passa, não vai, não corre, não foge, não esquece.
Definitivamente eu sabia, ele não era hora minha. A angústia era enorme: ele nunca seria definitivamente meu. Será, no máximo, o secreto nos meus pedaços de mundo particular, meu São Francisco Imenso, que estarão em qualquer parte, aonde quer que cheguemos. Em nós, haverá espaço até para o esquecer. Já de nós, que nunca nasceu, restará a expectativa que não brindou a champagne e não cantou os parabéns: Eu sei, ele vai me render uma vida inteira! Até chegar o meu dia de loucura, porque aí eu inverto o passo!

Um comentário:

  1. Juliane, olha só como é proveitoso gazer análises literárias: lendo Drummond me deparei com versos que me lembraram este conto:

    "Fulana às vezes existe demais; até me apavora".

    O Mito . A Rosa do Povo.

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